Wednesday, September 08, 2010

Práticas discursivas e a desqualificação do outro:



A desdramatização da violência


A violência no entanto que uma conjectura de cariz morfologicamente ético afigura-se repugnante e não aceite em qualquer que seja o contexto no qual se pretenda justificar a sua aplicação. Porém importa rever as circunstâncias nas quais a acção dos sujeitos sociais ocorrem, sendo estas orientadas por diversos catalisadores dentre os quais se destacariam as emoções, as crenças, as tradições, as aspirações ou metas individuais como grupais. A violência está presente em quase toda a natureza da acção social como algo intrínseco e de certa forma dotada de racionalidade.

Se olharmos para a violência de forma mais simplificada como um comportamento que causa danos a outra pessoa, ser vivo ou objecto diremos que ela estava patente no sacrifício de animais entre a comunidade judaica pré-crista que assim procedia para a expiação dos seus pecados. A circuncisão masculina, as tatuagens buriladas sobre as partes mais variadas do corpo humano, e até os tapas correctivos infligidos às crianças traquinas e indisciplinadas caracterizam o exercício da violência no mundo-vida. A legitimação ou não do seu uso teima a incorporar sobre si um leque enorme de conflitos de interesses escondidos por detrás de argumentos subjectivamente éticos.

O uso da violência ganha legitimação quando visa o alcance de um desiderato em nosso beneficio e sobretudo quando motivados por uma razão instrumental na qual os fins justificam os meios. A não compreensão das motivações por detrás de qualquer acção baseada na violência pode concorrer para a emissão de juízos valorativos como diria Boudon – o sociólogo francês.

Na onda dos protestos populares ocorridos em Maputo (nos dias 1 e 2/09/2010) contra a subida de preços em produtos de primeira necessidade o recurso a violência foi notório de tal forma que despoletou a reacção de grupos mais conservadores. Porém não tardou que fossem vociferados discursos radicais de desqualificação do outro.

Desde os assaltos aos estabelecimentos comerciais, a incineração de viaturas pertencentes a particulares como a instituições públicas, as barricadas nas vias públicas, entre outras, caracterizaram o clima de violência inerente ao levantamento popular em protesto a especulação dos preços no mercado. Face a este cenário os adjectivos desqualificantes não tardaram a chegar sendo que tal acção foi interpretada como actos de vandalismo, banditismo, delinquência, e por ai em diante. O discurso em torno da desqualificação pode ter resultado da não compreensão dos valores que orientaram tal atitude.

Na história da descolonização de Moçambique consta que o movimento de libertação nacional tentou por várias vezes negociar de forma pacífica e por via de conversações com o Governo Colonial mas sem sucesso, até que decidiram por via da confrontação armada (e logo violenta) lograr com o seu desiderato, o que foi bem sucedido. Após a independência nacional alguns pontos de discórdia surgiram entre os ex-guerrilheiros da luta de libertação sendo que os detentores do poder não quiseram pela via do dialogo e pacificamente resolver as diferenças. Não tardou então que eclodisse uma guerra civil que teria terminado mal o poder político decidisse abdicar-se de uma postura arrogante para escutar através do dialogo as reivindicações da parte antagónica. Este passo foi crucial para o fim de um longo período de violência e estagnação do desenvolvimento sócio-económico do país. Poderia do ponto de vista normativo especular que a responsabilização pela destruição deveria ser repartida para ambas as partes conflitantes visto não terem entrado em acordo antes da expansão dos danos.

Nos dois exemplos da recente história de Moçambique a legitimação da violência está patente dado que tinha como fim último o alcance de um bem considerado crucial à uma maioria pertencente a classe dominada. Nota-se então o uso da razão instrumental na qual os fins justificam os meios. Tratando-se de lutas revolucionarias o sangue derramado, as perdas humanas, as infira-estruturas destruídas, e a violência em volta de toda essa panaceia justificava a liberdade que se pretendia alcançar. O problema residia no facto de não haver uma forma pacificamente correcta pela qual se lograriam os intentos da classe revolucionária.

Exemplos de conflitos de interesses bem sucedidos pela classe dominada na qual se furtou o uso da violência são irrisórios pelo menos no contexto moçambicano. Esta conjectura pode se sustentar com o caso dos madjermanes que vem há anos reivindicando os seus direitos de forma pacífica sem nunca realizarem tais anseios. Por esta via Mahatma Ghandhi não seria um exemplo excludente pois (embora a sua abordagem dos protestos pacíficos) em algum momento mostrou-se disposto a apoiar a metrópole britânica com recurso a violência na Segunda Guerra Mundial caso lhe garantissem a independência política da Índia. Talvez seja caso para dar azo a proposta de Horkheimer que achava inconcebível a libertação da classe dominada e oprimida sem recurso a violência.

A agressividade protagonizada nas manifestações supra-indicadas enquadram-se naquilo que Weber chamaria de acção racional teleológica ou seja orientada para um determinado fim. Neste caso estaríamos perante a razão instrumental que pauta pelo princípio segundo o qual os fins justificam os meios. Foram partidas as vidraças de instituições bancárias por simbolizarem o poder económico da classe política detentora do aparatus de dominação ideológica sobre as massas. Os maiores accionistas dessas instituições violentadas são na sua maioria pertencentes a elite político-governamental. Por outro lado a alegada vandalização de viaturas pertencentes a cidadãos singulares pode ser resultado de uma lógica bastante simples: “forçar aos mais endinheirados a juntarem-se a nossa causa, fazendo com que estes exijam a quem de direito a indemnização pelos danos sofridos”. Pode ser entendido também como uma forma particular de catapultar o interesse comum dentro da categoria social dos dominados ideologicamente.

É portanto difícil compreender a razão da violência quando-se é alienígena em relação à classe insurrecta. O sentimento de pertença ao meio insurgente concorre na maioria das vezes para a legitimação da violência. Assim ela poderá ser tida como a alternativa eficaz na consolidação do seu desiderato, por seu turno a desqualificação do outro afigura-se típico aos sujeitos sem o sentimento de pertença ao grupo.

O debate sobre o uso ou não da violência para qualquer finalidade parece mais ético-moralista que propriamente algo fundado sobre alguma análise cautelosa. Poucas vezes a razão instrumental se coaduna com os valores de natureza ética e moralista sendo que a emissão de um juízo valorativo em relação a acção de outrem pode resultar da não compreensão das suas motivações.

A violência pode ser violência enquanto tal quando temos a pretensão de emitir algum juízo valorativo, ao contrário disso ela pode ser naturalizada e encarada como algo comum a qualquer processo reivindicativo. No caso vertente do levantamento popular testemunhado nas cidades de Maputo e Matola no mês de Setembro de 2010 os actores envolvidos encontraram na violêcia o meio mais apropriado para a consecução dos fins almejados.

2 comments:

Unknown said...

Caro Sambo,
A sua interpretação é até certo ponto plausível, olhada na perspectiva em que a coloca.

Entretanto, os dois exemplos que dá sobre o caso moçambicano (a luta de libertação e a guerra civil) são, na minha opinião, muito discutíveis, do ponto de vista de se dizer que a violência em si propiciou o fim dos conflitos.
No caso da luta de libertação, muitos outros factores foram determinantes para o fim do conflito (aliás, há quem diga que o próprio início do conflito armado não foi apenas causado pela opressão, porque esta já era secular). Uma conjuntura internacional favorável ditou o fim do regime colonial (recorda-se das palavras de Philipe Ganhoux???)? Embora pesadas e difíceis de concordar com elas, dizem algo como, "a independência viria, mais tarde ou mais cedo, duma ou doutra forma". O que aconteceu é que veio da forma como a FRELIMO queria.
Sobre a guerra civil, penso que é exactamente a mesma coisa que se pode dizer: a partir da uma conjuntura internacional favorável, foi fácil terminar a guerra civil em Moçambique. Por que não terminou com os Acordos de Incomati? Enfim...
A violência pode ser uma forma de expressar desespero sobre alguma coisa, mas é também uma expressão de falta de argumentos plausíveis. E vemos isso todos os dias, de diversas formas.
Eu enquadraria a violência de 1 e 2 de Setembro no meio termo. Sou muito céptico quanto à considerá-la justificada pelos argumentos que apresentas, mas suficientemente cauteloso para considerá-las de todo injustificáveis.

Estamos juntos.

Book Sambo said...

Caro Landin,
Fico grato pelos seus comentários bastante interessantes. De facto posso concordar consigo quando diz que a violência reflecte ou expressa o desespero sobre alguma coisa. Mas antes de me elaborar sobre este ponto importa sublinhar que uma das chamadas de atenção que procuro fazer é sobre a bipolarização do debate em torno da violência.
De uma forma geral penso que a violência é um assunto que no fórum ético-moral afigura-se completamente repugnante. Em quase todas as esferas de cariz moralista ou ético, não há espaço para se debater o uso da violência pois consensualmente ela é algo deplorável. Porém o mesmo já não acontece quando se entra no campo da razão. Se falarmos da razão teleológica ou instrumental poderemos encontrar a justificação plausível do seu uso pois nesta abordagem depreendemos que os fins justificam os meios. Por outras palavras diria que recorremos ao uso da violência quando estamos certos de que ela é o meio mais apropriado para a consecução do nosso desiderato. Caso hajam outras opções para o seu alcance, a tendência será de abandonar os meios menos eficazes e pautar pelos mais adequados. Foi na sequência disso que justifiquei o uso da violência na Luta de Libertação Nacional e na Guerra Civil pois os seus actores estavam convencidos que usavam os meios mais apropriados para lograrem os seus intentos. Se assim não fosse, deixariam este caminho em busca de um outro considerado (por eles) como o mais eficaz. É assim que poderíamos explicar talvez de forma simplista a teoria das escolhas racionais.
Quase sempre fazemos esse exercício no entanto só podemos entender o outro se estivermos em condições de dizer que “no lugar dele eu agiria da mesma forma”. Mas quando não entendemos a acção do outro, abre-se espaço para juízos valorativos, atribuindo estereótipos ou adjectivos pejorativos aos nossos pares. É nessa ordem de ideias que concordo consigo quando diz que o uso da violência expressa desespero, e aí eu acrescentaria que “trata-se de um desespero pelo facto de constatar-se a não existência de outro meio mais apropriado para a realização dos nossos objectivos.” Estou a tentar fazer uma leitura da acção do outro (no entanto que objecto de uma analise). Se ele (o objecto) estiver convencido de ter em sua posse dos meios mais adequados para um determinado fim, não significa que nós (os sujeitos da análise) tenhamos a mesma convicção. Trata-se apenas de compreender que “no lugar dele eu agiria da mesma forma.”
O problema que se verificou nas diversas abordagens analíticas que tentaram se debruçar sobre os acontecimentos de 1 e 2 de Setembro é que não fizeram um exercício que os separasse do lado emotivo ou moralista. Parece-me que houve uma tendência de misturar duas abordagens equidistantes desenvolvendo um debate ético-moralista com a capa de algo mais elaborado do ponto de vista da neutralidade axiológica.