Wednesday, September 01, 2010

Práticas discursivas e a desqualificação do outro

O processo de dominação interclassista não é algo de causar surpresa a nenhum actor com um olhar critico sobre a realidade social. Trata-se de algo intrínseco a qualquer acção racional teleológica que pela sua natureza acarreta a adequação dos meios aos fins almejados. Nesse prisma os teóricos do conflito como o próprio Marx previram a insurreição de uma classe sobre a outra em resultado da tomada de consciência da sua condição de oprimidos.

Os neomarxistas como Dahrendorf, Horkheimer, Marcuse, entre outros, analisaram a questão dos conflitos sociais sob vários prismas, porem a mais pragmática afigura-se com o pragmatismo de Horkheimer ao apelar para uma inteligentsia responsável pelas mudanças sociais à partir das massas. Este sociólogo alemão apela para uma ciência ao serviço da classe dominada no sentido de se galvanizar uma consciência social em prol da sua liberdade face a exploração da qual é vitima.

Habermas não alheio ao sistema de dominação vigente nas sociedades caracterizadas por um capitalismo liberal ou tardio sugere (em lugar de uma exploração e dominação fomentada quer em favor de interesses privados quer políticos) a promoção de uma harmonização de interesses no intuito de se refrear a razão instrumental em favor da comunicativa.

No caso vertente de Moçambique assistiu-se a um primeiro levantamento popular, no pós-independência contra a elite politico-dominante, a 5 de Fevereiro de 2008 sendo o segundo a 1 de Setembro de 2010. Os motivos alegados para essa onda de inssureições associam-se a distribuição não equitativa dos rendimentos o que despoleta uma incandescente linha divisória entre dois principais grupos sociais, sendo por um lado os que perfazem uma elite politico-financeira e por outro os que compõem a massas no seu todo.

Alguns chamaram de greve os outros de manifestação, sendo que as vozes circundantes do espaço analítico moçambicano problematizaram os alicerces destas terminologias devido a natureza violenta que se apossou da onda de protestos. Por outro lado as elites ligadas ao poder politico mais uma vez serviram-se do cariz violento que caracterizou tais levantamentos para legitimar o seu discurso desqualificador em relação ao outro.

Adjectivos como vândalos, marginais, malfeitores, etc. foram imputados aos grupos que se levantaram contra a distribuição não equitativa da renda tanto como a pratica de exclusão social que caracteriza o pais. O repúdio a violência caracterizou à uma generalidade de intervenções feitas à imprensa por parte de figuras públicas, algumas ligadas claramente ao poder político-dominante e as outras não abertamente assumidas ou identificadas como parte deste. Tal posicionamento confronta-se com a afirmação crua e seca de Horkheimer segundo o qual não há mudanças sociais sem o desencadear de actos de violência. Verdade ou não, caberá ao entendimento de cada um; o que importa é que não é este o tema central destas linhas.

O problema que aqui se pretende levantar não se prende objectivamente aos adjectivos desqualificantes das massas amotinadas, mas quiçá ao seu impacto na esfera sócio-económica e politica deste pais. Antes de mais importa sublinhar que a atribuição de adjectivos pejorativos à um grupo antagonista pode ser o reflexo do não reconhecimento das suas capacidades de escolha dos meios mais adequados para atingir os fins almejados; em outras palavras seria um menosprezo as capacidades do outro e a deslegitimização da sua causa. Logo a prior isto seria um erro fatal para qualquer grupo que pretenda garantir a sua dominação sobre os seus antagonistas por mais tempo.

Apenas para lembrar sucintamente a história do processo de descolonização de Moçambique; o Movimento de Libertação foi alvo de constantes desqualificações por parte do Governo colonial sendo turras o adjectivo largamente conhecido. No entanto devido ao menosprezo sobre as capacidades do grupo antagonista não tardou que o poder de dominação há muito implantado neste pais fosse destituído.

Já na história recente referente a guerra civil verificou-se mais uma tendência de desqualificação do outro quando os antagonistas foram cognominados por bandidos-armados. As práticas discursivas fundadas sobre este adjectivo foram mantidas até que se reconhecesse o seu impacto nefasto sobre a economia do pais, tendo se encontrado a posterior uma forma de dominação interclassista até então sustentável. De bandidos-armados à maior força política da oposição a nova prática discursiva conseguiu através da racionalização, como diria Weber, sustentar por mais um período histórico significativo a dominação de uma classe sobre a outra. Isto foi possível graças a uma espécie de antídoto-social administrado aos antagonistas através de elementos proporcionantes de uma sensação de bem-estar ilusória à partir da satisfação aparente dos fins por si almejados.

Uma vez mais, conforme se disse anteriormente, o actual poder político-dominante voltou a proferir discursos de desqualificação do outro menosprezando assim a sua capacidade de subverter a actual ordem vigente de dominação interclassista. O impacto que poderá advir deste posicionamento ideológico-elitista poderá ter proporções imprevisíveis causando danos ao próprio desenvolvimento sócio-económico do país a semelhança do que se registou com a sua história recente relativa a guerra civil.

A proposta teórica de Habermas é clara sobre as estratégias de contenção aos levantamentos de massas experimentadas com sucesso nos países capitalistas de economia bastante avançadas. O que estes conseguem fazer, e que não se verifica em Moçambique, para garantir a dominação de uma classe sobre a outra é uso da ciência e técnica ao serviço da legitimação do poder. Falta quiçá alguma forma de canalização de estímulos, incentivos, e elementos que despoletem uma aparente sensação de bem-estar-social nas massas. Salários compatíveis com as funções exercidas, providencia social, transparência, observação dos dispositivos normativos em vigor, etc. não impediriam uma exploração do valor-trabalho inerente as massas. Antes pelo contrário poderia conter a onda de levantamentos populares em protesto da distribuição problemática dos rendimentos.

Em jeito de fecho importa aqui referir que uma articulação simbólico-comunicativa entre as partes conflitantes pode garantir uma harmonia social e prevenir vários focos de tenção mas para tal urge reformular as actuais praticas discursivas tendentes a desqualificação do outro.

5 comments:

Rildo Rafael said...

Belo texto Book

A inclusao do outro nao deve apenas cingir nos momentos de grandes programs de desenvolvimento mas sim em momentos tambem de tensao...

Ausencia de dialogo e consequentes rotulos sociais levam a nao se sentar a mesa com o outro desqualificado (vandalos, marginais, etc) foram sempre vandalos? porque ontem (5/2008 e hoje 1/2010?

Acho interessante a leitura que faz sobre a confusao que surgiu em torno da greve e manifestacao, ouvi o presidente do CMCM a dizer que nao era greve, porque greve tem de incluir patrao e empregado. ka ka ka. (greve de fome, quem é patrao!!!)

O que tu escreves hoje nao esta longe do que assistimos em momentos eleitorais, onde existe uma acentuada construcao das identidades colectivas
(nos/outros ,ou seja, bom e mau). ja escrevi um artigo sobre esta questao e prometo postar.

temos que compreender sobre a dessiminacao da violencia para podermos perceber, ninguem quer ser violento porque gosta de ser violento!, sobretudo os sectores excluidos. Tem mais aem certos momentos a violencia pode ser legitimada e refreada (lutas entre as claques nos momentos eleitorais sao de certa forma suavizados!!!

Estou bastante assustado com a massa intelectual que perfilam nos canais televisivos (STV, TVM, MIRAMAR, estao com receio de analisar os factos de forma independente ou genuina, assistimos apenas uma repeticao de ideias(subscrevo com o colega,vou na linha do colega, ele disse tudo)atentam contra o nome do teu blogg

Importante será capatarmos a dinamica da desqualificacao,qualificacao ou seja, os vandalos de hoje serão os eleitores do amanha e a musica muda porque será dancada num outro contexto.

Apetece-me desenterrar Bourdieu quando refere que "quem detiver o poder estar em melhores condicoes de elaborar uma imagem depreciada do outro" (imputar identidades, ARIANOS/JUDEUS)

pense sempre diferente

Unknown said...

Por muitos comentários e análises que façamos temos que chegar a um ponto comum e como civilizados não saimos daí: A violência não se justifica. Discutir o mérito, a justiça, justeza, razão, não podem ser envenenados por saques a lojas, arremesso de pedras, pneus queimados, machimbombos públicos destruídos. Até um carro duma estaçào de televisão...Estamos em 2010, sigamos o exemplo dos madgermanes: reivindicação pacífica, ordeira e até tem escolta da polícia.

Bayano Valy said...

neu amigo clementino,
o fervor é a arma de predilecão do impotente, já dizia fanon.
quantas manifestacões pacíficas já foram realizadas desde que guebuza subiu ao poder? todas as tentativas foram inviabilizadas. lembras-te o que aconteceu ao grupo de jovens que quis se manifestar a pedir a demissão do ministro tobias dai depois da explosào do paiol? lembras da manifestacão contra mugabe que foi inviabilizada na véspera?
sem a existência de canais de diálogo vamos continuar a ter fenómenos desses

Book Sambo said...

Caro Clementino,
O seu comentário é interessante porém acho que dependendo das situações há casos em que a violência é justificável. Nessa ordem de ideias vou concordar com o Bayano. Em todo o caso respeito o seu posicionamento.

Anonymous said...

a cofusao derivou-se por falta de lideranca embora o sentimento de que o custo de vida ta cada dia mais alta 'e de todos.
o governo deve, ja k tem todos os meios necessarios, desenhar estrategias de reducao do custo de vida com impacto directo no sociedade.
nos nao somos pobres por falta de recursos mas sim pela maneira como usamos os nossos recursos.