Nunca se falou tanto sobre o desenvolvimento como nos Séc. XX e XXI, em que foram igualmente criadas expressões derivadas deste conceito como é o caso do “desenvolvimento sustentável”, desenvolvimento humano, desenvolvimento económico, entre outras. A definição em si está longe de aclamar consensos, mas grosso modo, ela remete-nos à noção de ausência da pobreza, sobretudo quando falamos do desenvolvimento humano. A preocupação com relação ao desenvolvimento pode estar associada à descolonização do Novo Mundo, com particular destaque para América Latina e África, que teve início no Séc. XIX com a independência do México e Venezuela em 1810, Libéria em 1847, entre outros. À partir daí começa-se a observar grandes assimetrias no modus vivendi, modelos governativos, e na economia das ex-colónias quando comparadas ao Velho Mundo.
A pobreza ao nível mais elementar poderia então significar a incapacidade de um indivíduo prover para si e para seus dependentes as condições básicas para a vida em sociedade (alimentação e vestuário). Vários estudos actuais incluindo os relatórios das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento indicam que a maioria dos pobres encontra-se nos países do Sul dos quais Moçambique faz parte. A forma como se apregoa sobre o fenómeno pobreza, remete-nos à ideia de estar associada à uma maldição. Assim sendo, todos fazem de tudo para que se distanciem há todo o custo desse flagelo.
É sobre essas estratégias não institucionalizadas de fuga, à maldição da pobreza, que pretendo aqui abordar olhando para o nosso quotidiano. Vale lembrar o adágio popular segundo o qual Maomé vai a montanha quando esta não vai a ele. Por outras palavras se as instituições deixam de levar à cabo as responsabilidades que lhes cabem – neste caso o de garantir o desenvolvimento do país – os cidadãos empenham-se nisso a título individual acarretando todo o tipo de consequências.
Para não se parecer pobre, portanto amaldiçoado, é comum que a regra é fazer-se automobilista sem importar a proveniência da viatura; se emprestada, se roubada, se oferecida, comprada, etc. O importante é deixar de ser peão. Isto não vem ao caso, a escolha da viatura como artefacto da opulência pode ter antecedentes históricos sobejamente conhecidos.
Num Moçambique recém independente – no tempo das balalaicas - com uma maioria populacional rural e/ou de origem rural, analfabeta, pobre, etc. depois dos descendentes dos ex-colonizadores, os poucos automobilistas nativos eram Altos Dirigentes do Governo. Os primeiros eram a maioria que dirigiam viaturas particulares sendo que poucos nativos poderiam fazê-lo, ou então deveriam aguardar pelas concedidas pelo Estado caso se tratasse de um elemento à ocupar uma posição de destaque no Governo. As razões de tudo isso tinham a ver com os custos onerosos para a aquisição de uma viatura automóvel.
Até hoje, parece que os honorários do grosso dos funcionários públicos não favorecem à aquisição de uma viatura quer dentro, quer fora do país, com a agravante de não termos uma indústria automóvel. Uma vez dito que o Estado é o maior empregador do país – com um total de cerca de 179.383 funcionários, segundo dados do Ministério da Função Pública, num universo de mais de 20 milhões de habitantes, importa referir que a realidade que se vive actualmente despoleta muitas inquietações.
Quer me parecer que o sector informal seja o maior empregador se considerarmos por hipótese que existem pelo menos mais de 3 milhões de adultos, em condição activa, neste mesmo país. Por assim dizer, verificamos uma crescente exponencial de indivíduos que mesmo sem vínculo com uma instituição devidamente formalizada fazem-se à rua dirigindo automóveis de vária ordem; desde os mais baratos aos mais luxuosos. Mesmo para os que, estando vinculados à uma instituição formal, auferem o salário mínimo nacional (menos de $100,00) não perdem a oportunidade de adquirirem o famigerado artefacto da opulência. Não importa questionar de onde e como conseguem os valores para esse efeito, apenas reflectir sobre as consequências desta ilusória fuga desenfreada a pobreza.
Numa breve comparação com o período colonial e os primeiros anos que se seguiram a independência ousaria afirmar que ser automobilista coincidia muitas vezes com o facto de se ser um indivíduo idóneo, responsável, educado, etc. Actualmente parece que uma coisa não tem alguma relação com a outra, pois temos no grupo dos automobilistas, indivíduos fracassados no sistema de ensino formal, uns mal sucedidos na admissão à um emprego formal devido as suas baixas qualificações, um número significativo de delinquentes, cadastrados perigosos, entre outros de conduta moral duvidosa.
Actualmente ser automobilista parece que já não significa ser um técnico altamente competente, com muita educação formal e consequentemente bem remunerado. Em poucas palavras, diria que há muita mistura nessa categoria social.
Por um lado há que exaltar o lado positivo dessa mistura ocorrida na categoria dos automobilistas pois revela o respeito pela inclusão social por parte das autoridades governamentais. Pelo menos temos a possibilidade de nascer pobre e morrer rico; ninguém é vedado à esse direito como talvez seria numa sociedade de castas como a Índia. Por outro lado essa mistura é um sinal positivo na medida em que demonstra a capacidade que os cidadãos têm em não depender de um emprego formal (por conseguinte difícil de obter) para combaterem a pobreza que assola ao seu agregado familiar. Não quero falar do combate a pobreza do país pois me parece que esta é combatida pelas instituições formais que interferem na provisão de serviços públicos, infra-estruturas públicas, bens de consumo, etc. o que não chega à ser condicionado pelos indivíduos que à título individual (e pouco claras) procuram arrecadar somas avultadas para o sustento próprio. Existem muitos outros aspectos positivos, que não poderei arrolar aqui, desta mistura a semelhança dos negativos que lhe caracterizam.
As facetas negativas começam desde a tolerância a mediocridade que se verifica com a concessão indiscriminada de licenças para condução de automóveis aos indivíduos que não reúnam condições para tal. Um sinal disso verifica-se na violação das normas básicas de condução que são feitas por ignorância e por vezes de forma premeditada devido a crise de valores morais dos novos automobilistas. A ultrapassagem pela esquerda, em momentos inapropriados, casos em que se condiciona um congestionamento na rodovia porque se está a falar ao telemóvel, enviar um sms, ou simplesmente trocando de impressões com um conhecido, tendo para isso imobilizado o automóvel na faixa de rodagem, etc. são alguns dos poucos exemplos do que se vive na capital moçambicana.
A importância dada à posse de uma viatura é idêntica a que um meliante dá à uma arma de fogo pois ela simboliza-lhe o poder sobre os não detentores. Dependendo da potência ou calibre, ela pode-lhe dar um status mais elevado sobre os outros em posse de armas menos potentes. A modificação das jantes originais, os autocolantes que em letras garrafais enunciam o lema ou valores do condutor da viatura, a poluição sonora em jeito de competição entre membros da mesma “subcultura” etc. demonstram a sensação de poder por parte desses concidadãos. Nesse caso há espaço para estratificação que vai desde as viaturas de origem ocidental às orientais, quer numa quer noutra há sempre modelos e marcas que definem a hierarquia dos automobilistas. O lamentável é dizer que essa estratificação começa e termina nas rodovias pois não espelham fielmente a condição social dos mesmos.
Trata-se portanto de relações de poder funcionais apenas durante o trânsito, onde cada um tem a oportunidade de simular que escapou da maldição da pobreza graças a máquina que ostenta. Nessa altura o actor desse simulacro leva vantagem quando os seus espectadores são-lhe completamente estranhos (como diria Goffman, o sociólogo americano), pois abre-se espaço até para atitudes de má fé, em vantagem da capacidade de impressionismo que for a demonstrar. Não importa então se a viatura é alugada, comprada, roubada, ou do patrão, como fiz menção nas linhas anteriores. O importante é que os espectadores o admirem e aclamem-no por ter escapado da pobreza.
O teatro que tem lugar nas nossas rodovias faz o sucesso que faz pelo facto de não haver tempo ou interesse em questionarmos a quem quer que seja, sobre a vida privada do automobilista em causa. Provavelmente a máscara cairia se tivéssemos informações sobre onde o mesmo dorme, onde se formou, qual é a sua fonte de renda, etc.
Esta mistura vem igualmente revelar a incapacidade das instituições formais de cumprirem com as suas obrigações, esta é talvez uma das grandes diferenças entre o nosso país e os outros ocidentais onde igualmente têm delinquentes e cadastrados na condição de automobilista. Um exemplo disso verifica-se no licenciamento indevido de cidadãos sem a capacidade para dirigir um automóvel; a cegueira das instituições que deveriam fiscalizar e manter a ordem nas rodovias em lugar da institucionalização das extorsões. Uma outra grande revelação que daqui resulta prende-se com a exposição das fraquezas do nosso sistema de educação. Parece que o teatro observado na via pública vem demonstrar a necessidade de introdução da moral e ética no curriculum do ensino geral.
O desenvolvimento de um país é algo que passa por um esforço das instituições governamentais, do sector privado e da sociedade civil, que em conjunto põem em prática o plano operativo do elenco governativo, condicionando melhorias ou incremento das obras públicas, a provisão de bens e serviços, o bem-estar social, etc. Quando estas abdicam das suas responsabilidades abre-se espaço para vários problemas sociais como a fuga ao fisco pelo sector privado formal e informal, a eclosão do crime organizado, a corrupção, o nepotismo, entre outros males que surgem como estratégias individuais ou grupais para a solução de inquietações particulares. Infelizmente Moçambique parece não fugir à essa regra – o que se verifica pelo teatro que vemos gratuitamente na via pública.
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