Friday, November 16, 2007

Os emigrantes do tempo

Existem tantas surpresas por aí que por vezes nos deixam boquiabertos. Mas como surpresa é mesmo surpresa pelo menos dá para vivê-las e, em seguida, comentar sobre elas com a primeira pessoa que nos aparecer pela frente.
Olhando apenas para o factor idade, fica por vezes difícil de julgar as pessoas de modo a determinar se é criança, adolescente, jovem, adulto, ou idoso, e isso lembra-nos algumas das surpresas que um dia tivemos. É claro que a sociedade já tipificou os atributos de uma criança, idoso, adolescente, etc. Por isso mesmo ficamos surpreendidos quando os atributos de um são encontrados no outro podendo, em alguns casos, serem surpresas positivas ou negativas.
Quando uma criança organiza o seu discurso de forma coerente e lógica, a surpresa é maior porque achamos que ela atingiu a maturidade precocemente. O inverso é também verdadeiro no sentido de que os adultos surpreendem-nos, mas desta vez pela negativa quando agem de forma imatura. Pois então é à partir deste ponto que podemos desdobrar-nos sobre os atributos de criança, idoso, jovem e adulto.
Deixando de lado a idade biológica podemos começar a olhar uns para os outros e conviver com a idade sociológica de cada um. Antes de entrar em detalhes sobre este ponto queria abrir um parênteses para convidar lhe a olhar para este argumento em similitude ao do sexo e género. As abordagens sobre o género referem que os atributos sobre o sexo feminino e masculino encontram-se no campo da biologia ao contrário do género masculino e feminino que se enquadram nas ciências sociais.
Da mesma forma que a sociedade criou valores concebidos para as mulheres e homens pode, do mesmo modo, inverter os papéis sociais de cada um, ou mesmo permitir a permutação dos mesmos entre os géneros, daí que a igualdade de género é possível.
No atinente a idade gostaria de chamar atenção para um pequeno detalhe. A sociedade também convencionou uma série de atributos, valores e modus vivendi para cada faixa etária. Mas a manifestação destes valores não é linear e nem directamente proporcional à faixa etária ou idade biológica. É daí que podemos afirmar que ser jovem ou idoso tem a ver com os hábitos, valores, em suma com o estilo de vida de cada um.
Socialmente construimos um leque de expectativas em relação à conduta dos indivíduos de várias idades o que nos ajuda a ajuizar se o indivíduo se enquadra na categoria de jovem ou idoso, criança ou adulto. Por exemplo, tomando em consideração a faixa etária correspondente aos jovens e adolescentes diríamos que eles constituem um grupo fechado sobre os seus valores, que muitas vezes opõem-se em relação aos outros grupos criando, desta forma, uma espécie de exclusão social.
No nosso país, os adolescentes construíram uma categoria social baptizada pelo nome Senhor(a). Este topónimo significa entre outras palavras ser alienígena ou estranho relativamente aos nossos valores. Ser Senhor significa, antes de mais nada, alguém muito mais velho que nós; significa, também, não compreender a nossa linguagem (o calão que usamos) e o estilo de vida, não gostar da música que escutamos, não se simpatizar com a nossa indumentária, etc. Ser identificado por este topónimo significa, de alguma forma, fazer parte daqueles que escutam kwassa-kwassa, usam “calças de pano”, escutam Chidiminguana, consideram de marginais aos homens que andam de tranças ou que pintam o cabelo de loiro, e por aí em diante. Isso sim, significa ser Senhor na óptica dos adolescentes. Assim sendo é comum que se desenvolva uma série de comportamentos padronizados para o relacionamento com todas as categorias etárias diferentes da que pertencemos. É na sequência disso que entre os jovens e adolescentes a saudação gira em torno de um “comé mano?” e destes para os Senhores a saudação muda de tonalidade refreando-se para um “boa tarde”.
Os temas de conversa também constituem marcos identitários entre as faixas etárias; isso faz com que se dê distância e excluam-se os que não fazem parte do nosso grupo quer dos mais velhos para os mais novos e vice-versa. Mas como à princípio debrucei-me sobre o factor surpresa, importa repisar que elas aparecem quando alguém de um determinado grupo aparece com valores similares aos do outro, por exemplo. Nesse caso o mais provável é que despolete uma frustração de expectativas que pode ser positiva ou negativa mediante os valores do indivíduo frustrado. Em jeito de exemplo, se um indivíduo de 23 anos depara-se com um outro de 52 anos vestido a hippie, mascando uma pastilha elástica, escutando Zukuta nuns auscultadores do Nokia N-95, poderá muito provavelmente ficar positivamente surprendido.
Um dos factores que muitas vezes envelhece as pessoas é a falta daquilo que, em linguagem informática, chama-se de upgrade ou update. Vivemos presos no tempo como se de um relógio parado nos tratassemos. Ser jovem ou não, acaba sendo um construto social que se resume no modo de vida, nos hábitos e costumes e, no sentido mais restrito, emprestaria o conceito de habitus largamente usado por Bordieu.
Todos bebem a cerveja, mas a diferença entre os jovens e os não jovens começa a manifestar-se pela maneira como cada um dos dois a consome. Os locais onde se consome, a música que se escuta no momento, a maneira como se desfruta a euforia adquirida pelo alcool, etc. Tudo isso marca diferenças entre um e outro grupo.
Os antropólogos já nos disseram que a cultura é dinâmica e não estável. Os updates ou simplesmente a actualização dos valores socialmente construidos farão do indivíduo um autêntico emigrante do tempo, mantendo-se sempre actual. Dentre as várias fórmulas existentes, esta é uma delas para fazer face ao conflito de gerações, pois existe uma tendência quase que natural em considerar melhor tudo o que tem a ver com o nosso tempo. E o nosso tempo é sempre aquele em que fomos adolescentes e jovens, como se depois desta faixa etária não pertencêssemos mais ao tempo ou não mais o tivéssemos. Isso para dizer que pode-se ser eternamente jovem se considerarmos que esta categoria etária como qualquer outra, são socialmente construidas. Isso não significa, necessáriamente, a perda de valores ético-morais aceites pelo meio em que nos encontramos, antes pelo contrário. Senão diríamos que ser jovem é sinónimo de perversão e delinquência, o que não corresponde à verdade.
Da mesma forma como existem indivíduos mais velhos que se confundem com os mais novos pelo seu estilo de vida, há também casos de mais novos que adoptam valores dos mais velhos e frustram, por isso, as expectativas da sociedade em certos casos de forma positiva e em outros de forma negativa. Talvez o ideal para a sociedade seria frustrar positivamente as suas expectativas através de alterações ocasionais dos papéis sociais e, no sentido mais lato, do modus vivendi entre as demais faixas etárias. Quer para os mais velhos quer para os mais novos estariam a fazer de si autênticos emigrantes do tempo cruzando o passado, o presente e o futuro através dos valores sociais, usos e costumes partilhados entre si. Deste modo alguns costumes do passado seriam perpetuados e os outros renovados construindo assim uma cultura homogénia entre os demais grupos etários.
Não se pretende, com isto, sugerir a homogeneidade de valores na nossa sociedade, antes sim reflectir sobre questões como conflitos de geração, o desejo de ser eternamente jovem (actualmente visível entre os clientes dos cirurgiões plásticos), entre outras, que são basicamente determinadas pela não aderência à categoria dos emigrantes do tempo. Ademais, podemos vincar que a própria heterogeneidade constitui um elemento preponderante para a definição identitária dos grupos sociais, mas cabe a cada um definir através das suas pretensões individuais o seu próprio estilo de vida. A heterogenidade é pertinente para o enriquecimento da sociedade, trazendo para si, várias identidades, quer de conservadores, ortodoxos, clássicos e até mesmo dos emigrantes do tempo.